Era uma noite de inverno, quase fim de agosto de 2019, alguns meses antes da pandemia da Covid-19 chegar. Na entrada do auditório da Ordem gaúcha, havia uma exposição de alguns trabalhos de artistas negros, que compartilhavam ali seus dedicados ofícios para quem tinha ido ao local participar do evento, que fazia parte do Mês da Advocacia: o II Seminário Internacional pela Igualdade Racial, promovido pela Comissão Especial de Igualdade Racial (CEIR), da OAB/RS. As cores neutras, quase que padrão, de ternos, vestidos e blazer que advocacia geralmente usa, era ofuscada por turbantes e tecidos com cores vivas, utilizadas por muitos participantes do seminário.
A noite era especial para a advocacia negra. O auditório estava lotado e o seminário contava com discussões importantes relacionadas à advocacia e à negritude, como: 'O Impacto do Pacote Anticrime para a População Negra e a Redução da Criminalidade'; 'Práticas Políticas e Relações Internacionais em prol da Igualdade Racial'; 'Políticas Institucionais para Promoção da Equidade'; entre outras. Além disso, o evento contava com a entrega da homenagem "Dr. Osvaldo Ferreira dos Reis", aos juristas negros e às juristas negras.
Entre tantos momentos especiais durante o seminário, foi na entrega do título de jubilamento, grande honraria para a classe, que é oferecido a profissionais que tenham mais de 30 anos de atividade profissional e com no mínimo 70 anos de idade, nos casos previstos pelo Provimento nº 111/2006, que uma das tantas cenas chamaram a atenção: a sessão de honraria ao advogado Júlio César Terra, entregue pelo seu filho Jorge Terra, presidente da Comissão da Verdade sobre a Escravidão Negra e Conselheiro seccional da OAB/RS.
Escolhemos falar sobre a Advocacia Negra, partindo da história de Jorge Terra e Júlio César Terra, não somente pelo momento de outorga da honraria ter sido emocionante para os presentes, mas também por ser uma boa história para ilustrar as diferenças trazidas no recorte de raça dentro da advocacia e porque falar disso é tão importante e necessário.
Júlio César Terra é tio de Jorge Terra e assumiu as responsabilidades de pai de Jorge quando, aos 3 anos de idade, o que seria futuro presidente de CVEN, perdeu seu pai biológico. Júlio se entusiasmou com o Direito após fazer a faculdade de Serviço Social e de ser estimulado pela mãe a estudar e fazer um concurso. Foi na área que se viu estimulado a incentivar os alunos negros. "Minha mãe cobrava bastante que eu estudasse e trabalhasse, o que me estimulou a fazer isso com outros alunos negros. Já fui professor e também fazia isso. Estamos crescendo cada vez mais, e fico me perguntando se a turma nova tem condições, essa é minha preocupação. Na minha turma, eu era o único negro. Hoje já vejo 2 ou 3, o que parece pouco para os novos, mas para os velhos essa quantidade de estudantes e profissionais negros no mercado é muita", contou.
Jorge Terra, desde o 12 anos, já sabia que queria fazer Direito. O motivo: a inspiração causada pelo pai-tio. "Minha escolha tem a ver com a figura do meu tio, que era advogado. Sabia das dificuldades e não tinha a visão romântica, mas, por outro lado, eu me via plenamente capaz de alcançar esse objetivo. O que é importante. Muitas vezes, as pessoas acabam tendo uma baixa auto estima por ser negro", disse.
Apesar da diferença de idade, Jorge tem 53, Júlio 75, e as situações de racismo na profissão aconteceram para ambos. Foram confundidos como sendo réus. Tiveram tratamento minimizado por serem negros. Assim como também já foram reconhecidos pelo excelente trabalho desenvolvido em suas funções. "Já aconteceu várias vezes de pessoas negras pedirem para me abraçar, porque me veem de terno, reconhecem meu trabalho, sabem quem eu sou", disse Júlio.
Segundo Jorge Terra, que além de atuar na CVEN também é membro da Comissão de Direitos Humanos Sobral Pinto, da OAB/RS, o Direito ainda tem muito o que mudar em relação à igualdade racial.
"Ainda temos problemas com livros jurídicos e com as aulas de Direito. Temos aula de Direito Constitucional em que se fala de igualdade, mas jamais se fala de igualdade racial. Se fala de Direitos Fundamentais, da Alemanha. Muitos de nós foram estudar na Alemanha, mas muitos não conseguem fazer relação entre o holocausto judeu e o genocídio da população negra. Fazem relação entre a justiça de transição que houve com os judeus na Alemanha, mas falta a justiça de transição dos que foram escravizados durante tantos anos. Nós lemos livros de Direito Penal que não falam nada de racismo, embora seja um crime. Nós lemos sobre Políticas Públicas de uma maneira hipotética sem ver que falta representatividade negra no campo político, que impede que muitas temáticas cheguem à agenda política", salientou Terra.
Fonte: OAB/RS