O esquema funcionaria da seguinte forma: um grupo de advogados ingressava com ação de execução contra aposentados com rendimentos altos em caderneta de poupança.
Juízes que emprestam cartão digital, login e senha para servidores usarem de forma rotineira no serviço jurisdicional violam deveres da magistratura, por terceirizarem suas tarefas a funcionários. Assim entendeu o Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo ao abrir processo administrativo disciplinar contra um juiz de Santos. A corte ainda vai julgar o mérito do caso, para definir se ele deve ou não ser punido.
A Corregedoria-Geral de Justiça viu indícios de que Rogério Márcio Teixeira, titular da 12ª Vara Cível de Santos, costumava deixar seu cartão de autenticação eletrônica para que servidores redigissem, finalizassem e assinassem decisões sem nenhuma conferência posterior do juiz. Pelo sistema, parecia que ele próprio havia sido responsável pelos atos. De acordo com o corregedor-geral, desembargador Pereira Calças, o rastreamento dos IPs (identificação dos computadores utilizados) demonstra que várias decisões proferidas entre junho de 2015 e dezembro de 2016 “foram criadas, finalizadas e assinadas” em quatro computadores diferentes localizados no ofício judicial, e não no gabinete de Teixeira.
Calças afirmou que ainda não é possível declarar se as decisões foram julgadas efetivamente por servidores. Ainda assim, considerou que emprestar o cartão e dados pessoais aos assistentes, “como se fossem canetas”, já demonstra “deturpação da atividade jurisdicional e extrapola qualquer lógica e coerência de conduta do magistrado”. A situação em Santos só foi descoberta, segundo Calças, depois que um escrivão que trabalhava com Teixeira tornou-se suspeito de direcionar processos para a vara, simular citações e desviar mais de 10 milhões de reais de idosos que eram partes nas ações.
O esquema funcionaria da seguinte forma: um grupo de advogados ingressava com ação de execução contra aposentados com rendimentos altos em caderneta de poupança. O escrivão declarava que a citação havia ocorrido, embora os executados não tivessem sido verdadeiramente informados. Assim, sem contestação, valores eram bloqueados pelo sistema Bacenjud em favor dos autores. O caso foi investigado em inquérito policial e processo administrativo contra o servidor, que acabou demitido. Apesar do contexto, o corregedor disse que o responsável pela vara viraria alvo de PAD por irregularidades na rotina do local, e não por envolvimento no esquema.
O defensor do juiz, negou que o cliente tenha transferido atribuições jurisdicionais. Em sustentação oral no dia 13 de setembro — quando o julgamento teve início —, ele afirmou que Teixeira atua com seriedade, é responsável por todas as suas decisões e jamais contribuiu com irregularidades cometidas pelo servidor. Ele disse que o titular da 12ª Vara Cível de Santos ainda está se adaptando às novidades do processo digital, e que não haveria problema em emprestar o cartão digital para funcionários resolverem “coisas menores”. A defesa prévia alegou ainda que o empréstimo de cartão e demais dados pessoais era necessário para tornar as atividades da vara mais céleres.
“Quantos dos juízes liam o processo [físico] inteiro antes de assinar um despacho de mero expediente simples? Evidente que é uma situação anormal, mas é real”, declarou o advogado. Já o corregedor respondeu que, enquanto a mera elaboração de minutas “ocorre em todos os nossos gabinetes” e corresponde a uma das funções de serventuários da Justiça, a suspeita de fraudes na vara indica que o titular não tinha controle sobre os atos, mesmo que não tenha participado diretamente das irregularidades.
Vários membros do Órgão Especial criticaram esse tipo de conduta. O desembargador Beretta da Silveira disse que a prática demonstra “desleixo total” na atividade da magistratura, enquanto o desembargador Sérgio Rui usou a expressão “farra do cartão”, que seria uma “delegação ampla, geral e irrestrita e verdadeira terceirização da jurisdição”.
Rui, inclusive, sugeriu o afastamento de Teixeira. Venceu, no entanto, o voto do relator sem essa medida antecipada. O presidente da corte, desembargador Paulo Dimas Mascaretti, não viu motivo para retirar o juiz da vara, pois ele parou de emprestar o cartão e não há qualquer indício de que tenha participado das fraudes — se responsabilizado futuramente, a pena não chegaria à disponibilidade por dois anos nem à aposentadoria compulsória.
Para Mascaretti, porém, a abertura do PAD é necessária para apurar os fatos com profundidade. A decisão foi tomada por maioria de votos. Pereira Calças declarou ter ficado preocupado ao notar, em correições pelo estado, que outros juízes também têm adotado a prática de emprestar cartões, login e senha de acesso a servidores. Para o corregedor-geral, esse tipo de conduta é grave.
Processo: 12.173/2017
Fonte: Conjur