A Justiça do Trabalho afastou o vínculo de emprego pretendido por um homem com sua ex-companheira, na função de doméstico-cuidador. A sentença é do juiz Henrique Macedo de Oliveira, no período em que atuou na 4ª Vara do Trabalho de Uberaba-MG.
Segundo o apurado, o autor permaneceu na casa da ex-companheira quando ela estava em viagem para o exterior, por cerca de um mês, assumindo tarefas domésticas e cuidados com o filho da mulher. Mas, após analisar as provas, o magistrado observou que a situação ocorreu em razão do relacionamento afetivo que existia entre ambos, sem a configuração de prestação de trabalho, muito menos de vínculo de emprego, na forma prevista no artigo 3º da CLT.
Chamou a atenção, na sentença, a análise do caso realizada pelo juiz a partir de uma perspectiva de gênero. Houve referência ao protocolo lançado pelo CNJ, em fevereiro de 2021, para julgamento com perspectiva de gênero, que trouxe considerações teóricas sobre a questão da igualdade, justamente para que as decisões judiciais ocorram de forma a realizar o direito à igualdade e à não discriminação, evitando a repetição de estereótipos e a perpetuação de diferenças.
Para o magistrado, numa sociedade em que ainda prevalecem alguns estereótipos de gênero, como a atribuição às mulheres da responsabilidade de cuidar, com as assimetrias daí decorrentes, é importante que essas nuances sejam observadas pelos julgadores em suas decisões. Na conclusão do julgador, o autor se aproveitou de seu relacionamento com a ré para obter vantagem ilícita, revelando um aspecto curioso da assimetria de gênero, em que um homem se sente à vontade para cobrar de uma mulher o pagamento pelos serviços domésticos realizados no curso do relacionamento, como se essas atribuições fossem incompatíveis com a sua performance masculina.
Nesse quadro, foi julgado improcedente o pedido do autor de reconhecimento da relação empregatícia, bem como os pedidos decorrentes, como pagamento de verbas rescisórias, FGTS, horas extras e indenização por danos materiais.
Entenda o caso
O homem alegou que foi admitido pela ex-companheira, em 13 de abril de 2022, para a função de “doméstico-cuidador”, afirmando que trabalhou na casa dela até 17 de maio de 2022, quando deixou de comparecer ao local em razão da falta de pagamento dos salários.
Em defesa, a ex-companheira negou a existência do vínculo empregatício ou mesmo de qualquer prestação de serviços. Disse que, na verdade, ela e o reclamante mantinham um relacionamento amoroso na época e que, apenas em razão desse vínculo afetivo, deixou o filho aos cuidados do reclamante, enquanto realizava uma viagem a trabalho.
Os depoimentos das partes, bem como das testemunhas apresentadas pela ré, demonstraram que, de fato, o autor permaneceu na casa da ex-companheira em virtude do relacionamento amoroso que havia entre eles. O reclamante, por sua vez, não produziu provas testemunhais ou documentais aptas a revelar a alegada relação de emprego.
“A relação de emprego, juridicamente caracterizada, funda-se a partir da existência de trabalho prestado por pessoa física, com pessoalidade e onerosidade, de forma não eventual e subordinada (art. 2º c/c art. 3º, ambos da CLT). Negada a prestação laboral e o liame empregatício, competia à parte reclamante comprovar as suas alegações e desse encargo não se desvencilhou a contento”, destacou o magistrado na decisão.
Depoimentos das partes - Autor: “Lavava, passava e fazia comida”
Ao depor em juízo, o autor reconheceu que teve um relacionamento amoroso com a ré, afirmando que a conheceu em um “site” de relacionamentos. Disse que morou na casa dela por cerca de um mês, trabalhando na residência no período em que ela viajou, quando “lavava passava e fazia comida”, além de cuidar do filho da ré, contando que, no período, eles eram apenas amigos.
Ré: “Tinham um relacionamento amoroso” e “não prometeu pagamento”
A ré também prestou depoimento e confirmou que conheceu o autor no “site” de relacionamentos, por meio do qual se falaram por cerca de um ano. Relatou alguns encontros e afirmou que o autor se hospedava em sua casa. Contou que foi convidada por uma amiga para trabalhar como cabeleireira na França, “por cerca de 45 dias ou dois meses”, quando o autor ficou em sua casa, com seu filho, que é “especial, portador de deficiência mental”. Relatou que o autor montou uma fábrica de pipa na sala de sua residência e que “colocava o filho para vender pipa”. Disse ainda que, na época, eles ainda tinham um relacionamento amoroso e que “não prometeu pagamento ao reclamante durante a viagem”.
Testemunhas: “Autor e reclamada estavam planejando uma vida em comum”
A ré apresentou duas testemunhas que confirmaram que ela e o autor mantinham um relacionamento amoroso quando ela viajou para França e que, nesse período, ele foi morar na casa da ré junto com o filho dela. Uma testemunha, inclusive, afirmou que “autor e reclamada estavam planejando uma vida em comum”, enquanto a outra, que era o vizinho da ré, contou que o relacionamento entre ambos era de conhecimento geral na vizinhança. A testemunha disse ainda que “acha que o reclamante foi morar na casa assim que a reclamada viajou”, que chegou a ver o reclamante vendendo pipas do lado de fora da casa, com o filho da reclamada e que “pelo que sabe, o reclamante não ficou na casa prestando serviços para a reclamada, já que os dois tinham um relacionamento”.
Perspectiva de gênero
Na sentença, merece destaque a análise feita pelo magistrado, a partir da perspectiva de gênero: “a presente situação merece um olhar com perspectiva de gênero, uma vez que a tese defensiva de um relacionamento afetivo de curta duração é prova de difícil produção. Assim, o depoimento da parte do gênero feminino (ou que possua uma identidade de gênero feminina) e de sua testemunha ganham maior importância”, destacou.
Conforme pontuado, em fevereiro de 2021, o CNJ lançou o protocolo para julgamento com perspectiva de gênero, o qual, segundo o julgador: “se presta a ser mais um instrumento para que seja alcançada a igualdade de gênero, ao trazer considerações teóricas sobre a questão da igualdade para que os operadores do Judiciário possam ser aqueles que realizem o direito à igualdade e à não discriminação de todas as pessoas, de modo que o exercício da função jurisdicional se dê de forma a concretizar um papel de não repetição de estereótipos, de não perpetuação de diferenças, constituindo-se num espaço de rompimento com culturas de discriminação e de preconceitos”.
Na sentença, foi transcrito trecho do protocolo, em que se discute a “divisão sexual do trabalho”, também designado como “divisão do trabalho baseado em critérios sexistas” (fl. 25 do protocolo):
“Identificada a desigualdade estrutural, o princípio da igualdade substantiva deve servir como guia para a interpretação do direito. Ou seja, a resolução do problema deve ser voltada a desafiar e reduzir hierarquias sociais, buscando, assim, um resultado igualitário.
Se o gênero, como visto anteriormente, é uma construção cultural, as desigualdades de gênero são um fato. E qualquer atuação jurisdicional que se pretenda efetiva no enfrentamento das desigualdades de gênero vai pressupor a compreensão de como atuam as formas de opressão, buscando a desconstrução do padrão normativo vigente (homem/branco/hetero/cristão).
A magistratura brasileira, inserida nesse contexto de diferenças estruturais, caso pautada na crença de uma atuação jurisdicional com a aplicação neutra da lei e sem a compreensão da necessidade de reconceitualização do direito, servirá apenas como meio de manutenção das visões heteronormativas, racistas, sexistas e patriarcais dominantes, em descompasso com os preceitos constitucionais e convencionais da igualdade substancial.”
(Conselho Nacional de Justiça (Brasil). Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero[recurso eletrônico] / Conselho Nacional de Justiça. — Brasília: Conselho Nacional de Justiça – CNJ; Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados — Enfam, 2021. Dados eletrônicos (1 arquivo: PDF 132 páginas). Disponível em: www.cnj.jus.br e www.enfam.jus.br)
Nas palavras do referido juiz sentenciante: “Numa sociedade em que ainda se perpetuam alguns estereótipos de gênero, a exemplo da naturalização da atribuição às mulheres da responsabilidade sobre o cuidado e as consequentes assimetrias que deles se originam, é cada vez mais necessário que essas nuances sejam observadas pelo magistrado na execução de seu ofício”.
Inexistência da relação de emprego, assim como de trabalho do autor em benefício da ré
Para o magistrado, os depoimentos colhidos em audiência, tanto das partes como das duas testemunhas ouvidas, confirmaram a tese da defesa de que existia entre as partes uma relação análoga à união estável, pois o autor e a ré, por um determinado período, coabitavam a mesma residência e mantinham um relacionamento afetivo. Além disso, pareceu evidente, ao julgador, que o autor se comprometeu a cuidar da casa e do filho da ré enquanto ela viajava a trabalho. “Em outras palavras, um homem assumiu temporariamente o papel de cuidador do lar, como é de praxe para as mulheres, historicamente incumbidas dessa tarefa, e depois achou absolutamente natural ajuizar uma ação trabalhista buscando reconhecimento jurídico como empregado”, destacou na sentença.
“O reclamante se aproveitou de seu relacionamento com a reclamada para obter vantagem ilícita, revelando um aspecto curioso da problemática da assimetria de gênero, em que um homem se sente à vontade para cobrar de uma mulher o pagamento pelos serviços domésticos prestados no curso do relacionamento, como se fosse inadmissível a ideia de que tais atribuições pudessem ser compatíveis com a performance da sua masculinidade”, ressaltou o juiz.
De acordo com a conclusão adotada na sentença, não foi provada a relação de emprego, porque ausentes os pressupostos do artigo 3º da CLT, além de não ter sido demonstrado que a ré se beneficiou do trabalho do autor.
Litigância de má-fé
Na avaliação do magistrado, o autor se comportou de forma temerária, alterando a verdade dos fatos, sem qualquer explicação plausível, e utilizando-se do processo para conseguir objetivo ilegal. Nesse quadro, considerou-o litigante de má-fé e lhe aplicou a multa de 10% sobre o valor da causa, com fundamento no artigo 793-B, II, III e V, combinado com o artigo 793-C, ambos da CLT, reversível em favor da ré.
Foi aplicado, no caso, o artigo 142 do CPC, segundo o qual: “Convencendo-se pelas circunstâncias, de que autor e réu se serviram do processo para praticar ato simulado ou conseguir fim vedado por lei, o juiz proferirá decisão que impeça os objetivos das partes, aplicando, de ofício, as penalidades da litigância de má-fé”.
O julgador frisou que o princípio da inafastabilidade da jurisdição (artigo 5º, XXXV, da Constituição) não autoriza condutas processuais dissociadas de outro princípio fundamental: o da boa-fé, o que significa que o Judiciário Trabalhista precisa estar permanentemente comprometido com a verdade, coibindo todos os comportamentos que pretendam levar o juízo a erro, seja por parte de empregados, seja por parte de empregadores. “Pensar diferente é corroborar para o descrédito desse ramo especializado e estimular a utilização abusiva do direito constitucional de ação”, arrematou.
Justiça gratuita
Segundo o pontuado na decisão, o abuso do direito praticado pelo autor autoriza o indeferimento a ele dos benefícios da justiça gratuita, com fundamento no artigo 790 da CLT.
“A justiça gratuita, por vezes aplicada até de ofício no Processo do Trabalho, é exclusivamente jurídica, e destina-se ao trabalhador hipossuficiente, de modo que conceder tal benefício àqueles que usam do processo para obterem fins escusos, desvirtuando o direito constitucional de ação, seria o mesmo que se alinhar a tais condutas, tão duramente combatidas pelo ordenamento jurídico, correndo-se o risco até mesmo de se estimular o ajuizamento de demandas irresponsáveis perante a Justiça do Trabalho”, ponderou o magistrado.
Por outro lado, o juiz entendeu por conceder a justiça gratuita à ré, considerando sua situação peculiar, de ser obrigada a contratar advogado para se defender de demanda temerária. Foi esclarecido que justiça gratuita pode ser reconhecida ao réu, em caráter excepcional, principalmente quando se trata de pessoa física, para permitir o pleno exercício do direito de ação, incluído o de defesa, em situações em que ele não dispõe de recursos para quitar as despesas processuais sem prejuízo do próprio sustento.
Não houve recurso e a sentença transitou em julgado.
O processo já foi arquivado definitivamente.
Fonte: TRT3