A Justiça do Trabalho anulou os contratos irregulares firmados por uma empresa de assessoria e consultoria esportiva com atletas com idade inferior a 18 anos. Pela condenação, a empresa está ainda proibida de assinar, com atleta menor em formação e/ou seu representante legal, qualquer tipo de contrato que verse sobre gerenciamento de carreira ou que, de alguma forma, esteja relacionado às atividades desportivas praticadas. Isso sob pena de multa de R$ 20 mil devida para cada constatação de descumprimento.
A decisão é dos julgadores da 2ª Turma do TRT-MG, diante de ação civil pública movida pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) contra a empresa. Seguindo o voto da desembargadora Gisele de Cássia Vieira Dias Macedo, relatora no processo, foi mantida a sentença do juízo da 20ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte, mas com a redução da indenização por danos morais coletivos de R$ 200 mil para R$ 50 mil.
O MPT alegou que instaurou, inicialmente, inquérito civil para apuração de irregularidades atinentes à celebração de contratos com atletas menores de idade, com cobrança de comissões com base em salários e bolsas de formação sem autorização e cadastro da CBF e em desacordo com o artigo 27- C, VI, da Lei 9.615/98, conhecida como “Lei Pelé”. Assim como tentativas de manter o vínculo desses atletas que queiram se desvincular da relação por meio de ameaças de cobranças de dívidas não existentes.
No curso das investigações, o MPT constatou que a empresa oferece benesses aos familiares dos atletas em formação, “sendo que os clientes nada pagam (certamente para levar alguma vantagem financeira no futuro), bem como que muitos dos atletas estão em tenra idade, inapropriada para prática desportiva de rendimento, em verdadeiro agenciamento e gerenciamento de carreira de atleta em formação com idade inferior a 18 anos”.
Segundo o órgão, a conduta é expressamente vedada pela Lei Pelé. “Isso, além do fato da empresa ré se utilizar da cobrança de dívidas para forçar a manutenção do vínculo com os atletas, afrontando ainda o inciso III do artigo 217 e o artigo 227, ambos da CR, o artigo 69 do ECA, o artigo 3º da Lei 9.615/98”, informou o órgão ministerial, que tentou assinar, então, termo de ajustamento de conduta. Porém, como não obteve sucesso, apresentou a ação civil pública contra a empresa.
Em sua defesa, a empresa se opôs às obrigações que lhe foram impostas na sentença, bem como o pagamento da indenização decorrente de dano extrapatrimonial coletivo. Alegou que a prova dos autos não demonstra as irregularidades suscitadas pelo MPT, tais como a cobrança de dívidas e de comissões incidentes sobre salários e bolsas de formação. Ressaltou ainda que os serviços prestados aos clientes estão relacionados com a consultoria e assessoria na área esportiva, não havendo que se falar em ilicitude de atuação.
Segundo a julgadora, as normas gerais sobre o desporto foram instituídas pela Lei nº 9.615/1998, a qual dispõe no artigo 29, parágrafo 4º, que o pagamento da bolsa aprendizagem não gera vínculo empregatício entre o atleta não profissional (maior de 14 e menor de 20 anos) e a entidade de prática desportiva formadora. No entanto, a desembargadora ressaltou que a hipótese em análise não se trata de contrato de formação profissional e sim de vínculo estabelecido entre o atleta e a parte ré, cujo objeto, constante no contrato social, está relacionado com a prestação de serviços de consultoria e assessoria na área esportiva.
“Dos depoimentos colhidos no inquérito civil, percebe-se, claramente, desvirtuamento dos contratos de prestação de serviços assinados entre a agência e os atletas, devidamente representados ou assistidos quando menores de idade”, ressaltou a magistrada.
Conforme constatou a relatora, a empresa arcava com as despesas das partes contratantes, inclusive pessoais, sem que houvesse o pagamento da contraprestação, na forma disposta contratualmente. “E, embora tenha sido prevista a possibilidade de solicitação de mútuos, para fazer frente a eventuais necessidades, tal particularidade sequer foi levantada pelos depoentes. Na verdade, conforme se extrai do depoimento do pai de um jogador, os contratantes desconheciam os reais motivos pelos quais a parte contratada lhes oferecia as benesses”.
Por outro lado, a magistrada pontuou que o comprovante de inscrição e de situação cadastral da empresa revela que ela possui como atividade econômica principal a “de intermediação e agenciamento de serviços e negócios em geral, exceto imobiliários”. Situação que, segundo a desembargadora, vai de encontro com as alegações apresentadas nas razões recursais.
Além disso, a partir do depoimento de testemunhas, a magistrada entendeu que os menores, representados pelos responsáveis legais, já estavam atuando em determinado time de futebol, o que, sem dúvida, também denota uma correlação da agência com tais clubes. “Até mesmo porque não é razoável aceitar que tais empresas desse ramo prestassem serviços de consultoria e assessoramento sem contraprestação para tanto, conforme demonstrou a prova oral produzida”.
No entendimento da julgadora, os contratos não eram, de fato, cumpridos nos termos acordados, o que demonstra o desvirtuamento do objeto consignado, como forma de mascarar a relação firmada com os atletas de futebol, e com total afronta ao artigo 27-C da Lei nº 9.615/1998. Pelo artigo, “são nulos de pleno direito os contratos firmados pelo atleta ou por seu representante legal com agente desportivo, pessoa física ou jurídica, bem como as cláusulas contratuais ou de instrumentos procuratórios que: I - resultem vínculo desportivo; VI - versem sobre o gerenciamento de carreira de atleta em formação com idade inferior a 18 (dezoito) anos”.
A relatora assevera que, embora a prova não tenha noticiado, de forma expressa, sobre eventual cobrança de comissões do salário e bolsa de formação, é certo que as benesses concedidas aos atletas reforçavam o vínculo firmado, limitando, até mesmo, a liberdade de atuação dos contratantes, dado o grau de dependência desses. A julgadora reforçou que a ideia de mútuo, na forma prevista nos contratos, tampouco pode ser extraída dos depoimentos, tratando-se, mais uma vez, de mera cláusula sem cumprimento.
Dessa forma, o voto condutor acompanhou o entendimento do juízo de origem de que a prova produzida no inquérito civil é satisfatória para demonstrar o desvirtuamento do contrato firmado e também para concluir que a ré no processo era beneficiada pela força de trabalho dos atletas de futebol. “Assim, mantenho a decisão que declarou nulos todos os instrumentos procuratórios e contratos de prestação de serviços firmados pela empresa com os atletas em formação com idade inferior a 18 anos e/ou com seus representantes legais, que versem sobre gerenciamento de carreira ou que, de alguma forma, esteja relacionado às atividades desportivas praticadas pelo atleta menor em formação, determinando o imediato cumprimento da obrigação de não fazer, independentemente do trânsito em julgado”, concluiu.
Quanto à indenização, a magistrada entendeu que ficou caracterizado o dano moral coletivo. “Ficou demonstrado o desrespeito às regras trabalhistas que versam sobre a formação de atletas menores de idade, violando fundamentos e direitos basilares consagrados na Constituição da República, como a dignidade humana e o valor social do trabalho e tratamento diferenciado para o desporto profissional e não profissional”, concluiu.
Na visão da desembargadora, a conduta da empresa gerou danos a toda a coletividade de trabalhadores, que se sujeitam a tais condições, seja por desconhecimento dos seus direitos ou necessidade de subsistência. Por isso, ela manteve a condenação da empresa ao pagamento de indenização por danos morais coletivos, com redução do valor arbitrado de R$ 200 mil para R$ 50 mil. A julgadora levou em consideração a extensão dos danos, a natureza pedagógica da pena, o grau de culpa do ofensor e a capacidade econômica das partes. Cabe recurso da decisão.
Processo
PJe: 0010151-58.2020.5.03.0020 (RO)
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Fonte: TRT3