Nos últimos meses, a página de jurisprudência do site do Supremo passou a contar com curioso acréscimo: uma lista das omissões inconstitucionais do Legislativo. São “decisões em que se declarou a mora do Poder Legislativo e cuja matéria ainda se encontra pendente de disciplina”. Aquelas nas quais o Supremo entende que o Congresso viola a Constituição ao não elaborar as leis expressamente exigidas pela própria Constituição. Exercício de greve no setor público, criação de municípios e aviso prévio proporcional ao tempo de serviço são alguns dos exemplos de omissão legislativa inconstitucional.
O Congresso permanece inerte mesmo após a manifestação do STF. A publicação desta lista é mais do que ampliação do acesso dos cidadãos ao que se decide em Brasília. Expressa um possível desconforto entre o Supremo e os demais Poderes da República em pelo menos dois sentidos.
Primeiro, é capítulo no diário de viagem de um tribunal que vem enfrentando omissões legislativas desde 1988. Não se restringe às relações do atual Congresso com o atual Supremo. Vem de antes. É mais uma parada em trajetória maior. Viagem acidentada, com ajustes de rota -e de destino- em tempo real. No “leading case” mandado de injunção nº 107, decidido em 1990, o STF afirmou por unanimidade que, ante mora legislativa inconstitucional violadora de direitos fundamentais, ele apenas podia dar ciência ao Congresso da omissão. Não tinha poder para elaborar a regra que faltava.
Mas, em outubro do ano passado, o entendimento mudou. Uma maioria de ministros entendeu que, dada a ausência de lei específica regulando o direito de greve de funcionários públicos assegurado na Constituição, passariam a ser aplicáveis as mesmas regras para greve no setor privado. A minoria vencida queria ir além: em seu voto, o ministro Lewandowski propôs nada menos que 16 diretrizes para a greve de funcionários públicos.
É o STF ajustando sua rota. Criando regras gerais na falta de norma necessária à aplicação de direitos fundamentais. E até se divide sobre quais regras criar. A autocontenção de ontem se esvaiu. Reviravolta completa. Segundo o site, é declaração de intenções. Ou melhor, lembrete de intenções já muito bem declaradas. Tem um quê de “não diga que eu não avisei!”.
Não é de hoje que decisões do STF vinham pavimentando eventual mudança. Ainda em 1990, o ministro Sepúlveda Pertence observara que a decisão ali tomada era apenas “passo inicial”. Não excluía a possibilidade de que a eventual insistência do Poder Legislativo em permanecer inerte levaria à ampliação dos poderes do Supremo para completar a norma constitucional “paralisada pela omissão do órgão político”.
Mas não foi só. De lá para cá, algumas decisões em mandados de injunção mostraram um STF desconfortável com as permanentes omissões do Congresso em busca dos instrumentos jurídicos necessários para combatê-las.
O Supremo está consolidando sua mudança de interpretação. Esse é o fato. E está apenas começando. O poder não deixa vácuos, nossos congressistas certamente sabem. O país não pode parar à espera de necessárias leis que não chegam. Se o Congresso não aprova as normas criadas pelo Supremo, basta que legisle. Legislar é preciso. Até que isso aconteça, com todas as complexas variáveis envolvidas, a legislação judicial continuará a avançar.
Quem é mais legítimo para criar leis num regime democrático e de separação de Poderes? O STF não eleito pelo povo ou o Legislativo eleito pelo povo? Essa é a pergunta da teoria democrática liberal. Mas a história, às vezes, tem outras perguntas e urgências. A democracia representativa, que tem como único critério de legitimidade política o voto (ou a sua ausência), faz com que percamos de vista inéditas perguntas de hoje.
Segundo a fórmula liberal, entre um Legislativo que não faz as leis que deveria e um Judiciário que faz as leis que não deveria, quem age com mais legitimidade? Quem respeita mais os fins da separação de Poderes? Qual está avançando no território constitucional do outro?
Claramente, as estratégias judiciais e legislativas dos últimos meses nos levam a mais conflituoso terreno. O fim da autocontenção do Supremo e a continuidade da paralisia do Congresso são faces da mesma moeda. Nesse contexto, o ideal de harmonia e independência dos Poderes explica e molda pouco. Se o ideal constitucional é a harmonia entre os Poderes, como não se preparar para a guerra?
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Fonte: Folha de São Paulo